A punição (justa) ao Coritiba, um comercial (idiota) de cerveja e a renovação (merecida) de contrato do Andrade me botaram pra pensar sobre essa relação que, muitas vezes, me parece ser tão ignorada por aqui quanto o racismo no Brasil.
Existe esporte tão violento quanto o futebol?
Primeiro se faz necessário definir
violência. Que é inerente a esportes considerados nobres, do boxe ao judô. Derrubar ou subjugar o adversário não são exatamente objetivos fraternos. No entanto, a luta gentil é ensinada com orgulho pelos pais a crianças na mais tenra idade. Por quê? Por conta de sua
filosofia nobre. Honra. Respeito. Valores também presentes no ringue, mesmo que dois pugilistas se espanquem ao soar do gongo. Antes e depois, tudo muda. A violência não passa do último assalto. Ninguém quer, realmente, machucar o oponente.
Mesmo em esportes em que a violência salta aos olhos, há valores que são maiores. No futebol americano, no rugby ou no nefasto MMA, ela fica compreendida dentro de regras, escritas e não escritas. Se um jogador da NFL é taxado como "sujo", vai ter mais dificuldade para achar emprego. Será discriminado pelos próprios companheiros. Nenhum lutador quer ficar marcado por abusar de golpes baixos.
No futebol não.
No futebol, a violência frequentemente vem acompanhada da maldade. Não conheço esporte em que a deslealdade entre atletas surja com tanta força e frequencia. Malícia, malandragem, tudo se soma, dependendo do caráter do boleiro. É quando ossos se quebram. Seja um Zico ou um Eduardo da Silva, a lista de vítimas é enorme.
Nesta semana, meu mestre
Renato Nogueira me enviou o texto da coluna do
Ugo Giorgetti no Estadão. Falava sobre o mais novo ridículo comercial da Brahma com Ronaldo. O texto é grande, mas o reproduzo aqui:
"Não sei por que ando pensando muito num comercial da Brahma que andou, ou anda, pelas televisões. De fato ele não me sai da cabeça. Fiquei tão intrigado que recorri até ao site do Clube de Criação de S.Paulo, onde não só o encontrei na íntegra, como tive a surpresa de encontrar também declarações do diretor de marketing da Brahma que, por sua vez, vieram aumentar meu assombro. Queria, logo de início, pedir licença ao diretor da empresa para refutar uma de suas declarações. Diz ele: "Com a campanha não queremos impor nada a ninguém. Queremos apenas ser porta-vozes do povo brasileiro." Bem, meu porta-voz esse comercial não é, isso eu posso garantir. E, espero, também não seja de boa parte do povo brasileiro. Para quem não sabe, o comercial descreve a atitude ideal do torcedor brasileiro em relação à Copa do Mundo que se aproxima. Consta de uma sucessão de imagens bélicas e melodramáticas, onde supostos torcedores carrancudos, gritam, choram e batem no peito. Para deixar ainda mais claro a observadores menos atentos que o que se espera realmente são guerras e batalhas, mistura essas cenas com outras, fictícias, devidamente produzidas e filmadas, de um grande exército medieval em ação. Se as imagens falam por si, o pior é o som. Vozes jovens alucinadas urrando palavras de ordem num tom ameaçador, histérico, a lembrar manifestações das mais radicais e intolerantes agrupamentos que, infelizmente, existem no interior de qualquer sociedade. Eu me permito transcrever algumas das frases vociferadas: "Eu queria que a seleção fosse para a Copa, como quem vai para uma batalha!" "Eu quero guerreiros!", "Vamos para a guerra juntos! 180 milhões de guerreiros!" "Sou guerreiro!" No final do filme, num golpe de surrealismo que faria as delícias de Luis Buñuel, o locutor, contrariando o tom anterior de toda a mensagem, recomenda sabiamente: "Beba com moderação." O diretor de marketing da Brahma, no mesmo site do Clube de Criação continua: "A mensagem que queremos passar ao torcedor é que, além de ser a primeira marca brasileira a patrocinar oficialmente uma Copa do Mundo, o desejo da Brahma é despertar a atitude guerreira da seleção em todos os 190 milhões de brasileiros." Com todo o respeito que tenho pela Brahma, cuja publicidade acompanho, até por dever de ofício, há mais de quarenta anos, e que me pareceu sempre celebrar a alegria e a irreverência popular, essas declarações inspiram alguns comentários. O que eu espero da seleção é que jogue bola. Acho que o que nos derrotou em 2006 não foi a falta de guerreiros, mas foi o Zidane, que não era exatamente um guerreiro. Quanto aos 190 milhões, espero que honrem nossa tradição de saber perder, como fizemos em 1950 em pleno Maracanã, ou como fizemos em 1982, encantando o mundo. O resto é apenas apelar para o que há de pior na sociedade brasileira. Que é o que faz esse equivocado comercial dessa grande empresa. E de repente, a razão pela qual penso nele com tanta freqüência me aparece claramente: é que, de certo modo, o confundo com as cenas reais que aconteceram no estádio de Curitiba domingo passado. Ao revê-las me ocorre uma pergunta: os torcedores que, ensandecidos, fizeram o que fizeram no Paraná seriam "guerreiros" ou "brameiros"? Ou os dois? Infelizmente não foi possível alertá-los para invadirem e quebrarem tudo "com moderação"."A diretoria do Coritiba, como era de se esperar, recorreu da pena. Que, muito mais do que punir ou responsabilizar o clube, serve para educar o torcedor, mandar a mensagem de que cenas como aquelas acabam penalizando severamente o mandante. Torço para que não seja diminuída em um jogo sequer mas, mais do que isso, torço para que não fique apenas no campo do STJD - é preciso que se responsabilize, criminalmente, todo e qualquer daqueles vândalos que possa ser identificado pelas imagens de TV. Da mesma forma que os pitboys selvagens que brigaram no Leblon, naquela mesma noite.
E o Andrade?
Bem, o Andrade, que ganhava dez mil reais como funcionário do Flamengo, que foi promovido a técnico, que teve aumento para cinquenta mil, que levou o clube ao hexa e ontem renovou por 160, é dos poucos a nadar contra a corrente.
Andrade não fala em ver "sanque nos olhos" de seus comandados, como disse Silas ao ser apresentado como técnico do Grêmio. Andrade não manda nem jamais mandaria bater, pelo contrário - foi ele quem fez com que Aírton e Willians mudassem o comportamento dentro de campo, passando a não mais confundir vontade com truculência. Deixaram de colecionar cartões vermelhos e tiveram atuações fundamentais na arrancada final ao título. Aírton, principalmente, estava no caminho sem volta de se tornar um notório jogador desleal.
Mas mesmo esse Andrade, que qualquer amante da bola admira, já deixou-a de lado. Naquele 23 de novembro de 1981, foi expulso ainda no primeiro tempo da final contra o Cobreloa.
"Foi minha única expulsão no Flamengo. Foi um jogo muito catimbado. Um jogador deles tinha dado uma entrada forte no Junior e eu revidei, até pelo clima criado no jogo anterior. O árbitro já tinha expulsado um jogador do Cobreloa e minha expulsão foi uma forma de igualar as coisas. É coisa de fração de segundos, na hora você não pensa".É preciso pensar a violência dentro do contexto futebol. Seja na arquibancada, na TV ou no banco de reservas.
E um bom começo seria valorizar mais quem a combate.